terça-feira, 28 de julho de 2009

[Maio de 2000 \\ Lembranças de Miyako Kinoshita]

- Tem certeza de que precisa ir embora agora? Ainda está cedo... – Henri consultou o relógio e me encarou sugestivamente, rindo. Ri também e lhe dei um beijo rápido antes de me afastar com eficiência (para que ele nem pensasse em me puxar de volta) para fora da cama. Ele abaixou os ombros, derrotado, enquanto observava eu me vestir.
- Sim, tenho certeza. Preciso passar no vilarejo para “ser notada” por lá, antes de voltar para Durmstrang. As pessoas ficam muito curiosas e especulativas se um dos alunos some durante todos os finais de semana e volta tão... amarrotado.

Enquanto falava a última palavra, joguei-lhe a camiseta dos “Quiberon Quafflepunchers” que estivera usando até então. Estava tão amarrotada que parecia um efeito enrugado proposital do tecido.

- Além do mais, combinei de me encontrar com Gabriel e Ty por lá, para voltarmos juntos. Sem desconfianças, sem preocupações. Esqueceu que ainda “sou sua aluna”? – perguntei com um tom debochado levantando a sobrancelha.
- Você está certa. Agora que está acabando, não podemos vacilar. Mas a impressão que tenho é que os finais de semana ficam, a cada semana, mais curtos... Quanto tempo mesmo, até você se formar? – sua voz tinha um tom falsamente deprimido e girei os olhos, rindo.
- Aproximadamente dois meses. Tenha paciência, ok?

Já havia guardado tudo na bolsa e estava pronta pra sair. Pulei novamente na cama e ele abriu um sorriso enorme, me puxando pra junto de seu corpo e segurando meu rosto.

- Incrível... – ele comentou sério, me encarando e traçando as linhas do meu rosto com um dedo. Já ia perguntar o que era tão “incrível”, mas ele continuou: - Como você conseguiu fazer com que me apaixonasse completamente por você em tão pouco tempo?!
- Ah... São as preces de tantos anos pra Buda, ou meu charme oriental. Não sei dizer. Mas não fique tão dependente... Posso ser a fêmea de um gafanhoto que só está esperando o melhor momento da sua distração para te matar. – ele esboçou um sorriso e me beijou lentamente, enquanto entrelaçava toda a mão em meus cabelos. Tive de empurrá-lo para longe alguns minutos depois.
- Me mate agora. Mas não diga que tem mesmo que ir... tão cedo! – ele disse frustrado, me apontando as horas no relógio novamente.
- Você vai sobreviver. Eu também. Somos loucos o suficiente para sobrevivermos e levarmos toda essa nossa loucura adiante, até podermos contar para os netos e bisnetos de como eles nasceram da nossa completa insanidade.
- Pode apostar que sim.

Peguei minhas coisas e caminhei até a porta, parando para olhá-lo mais uma vez antes de fechá-la. Ele sorriu.

- Mais cinco minutos?! – tentou uma última vez e fiz careta.
- Te vejo amanhã, no treino. – disse com firmeza.
- Essas nossas horas de profissionalismo, ops, tortura semanal... Ainda vão acabar me matando.

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Desaparatei em uma área afastada do vilarejo e comecei a descer sem pressa a rua principal, caminhando até o pub lotado de estudantes aonde iria me encontrar com meus amigos. Estava distraída, e talvez até cantarolando alguma coisa e sorrindo para mim mesma, mas mesmo assim consegui identificar uma voz chamando por meu nome não muito longe. Parei me virando para trás e percebi que era Tatiana – que vinha ao lado de Inês – também descendo a rua. Esperei que me alcançassem, sem desfazer o sorriso.

- Novidades do final de semana, Miyako? – Tatiana perguntou interessada e sacudi os ombros.
- Nah, nada. Por quê?
- Não sei... Você parecia tão satisfeita e alegre agora mesmo. Pensei que tivesse algo de bom para contar. Você sabe, só pra variar. – ela disse com um tom levemente sombrio, o que me fez lembrar todos os acontecimentos no castelo.
- Infelizmente, não há nada demais para contar. Só um final de semana com meus pais e meus irmãos... – respondi forçando empolgação extra na voz e Tatiana sorriu. Inês, que estivera calada até então, soltou um barulho estranho pelo nariz que lembrava uma risada abafada. Olhei para ela confusa e ela me devolvia um olhar irônico e presunçoso.
- Foram eles que deixaram seu cabelo nesse estado? Eles que fizeram com que você se esquecesse de como colocar direito a blusa...? Você não reparou, mas ela está do avesso. Nossa! Seus irmãos estão mesmo um tanto “carentes” de você para que você precise ir até eles todo o final de semana dos últimos meses e voltar sempre assim...

Cada uma de suas palavras me atingia como facas. Senti uma grande quantidade do meu sangue subir a cabeça e os punhos tremerem levemente, enquanto as bochechas ardiam. Tatiana de repente olhava de Inês para mim, e de volta para Inês, atordoada com o repentino clima tenso que havia sido formado, sem precedentes.

- Não que eu te deva alguma satisfação, Inês, mas se quer saber... são eles sim. E eles me adoram. Uma pena que ninguém consiga ficar em sua companhia tempo suficiente para que você saiba o significado dessa palavra. – respondi entre dentes. Tatiana já caminhava estrategicamente para a minha frente, de modo que ficasse entre nós duas, mas a empurrei de volta com um pouco de violência.
- Deixe de ser tola, Tatiana. Nós não vamos brigar aqui. Não me rebaixo ao nível de alguns... – Inês respondeu fria, sem tirar os olhos de mim. Soltei um grunhido, apertando mais os punhos fechados. – Ao contrário “dessas pessoas”, eu sei ser discreta. E tenho ética, o que é mais importante.

Eu senti a visão cegar por um segundo e foi o que bastou para sentir a raiva me dominar. Teria me lançado em cima dela ali mesmo, mas dois pares de mão me agarraram para trás com força e me debati com eles uns segundos. Quando percebi que era inútil e “voltei a enxergar”, Gabriel e Ty me abraçavam defensivamente e esperavam que eu parasse de socá-los. Relaxei. Inês e Tatiana não estavam mais em meu campo de visão.

- Acredite em mim, Mi. Esse não é o melhor momento para comprar briga com a filha do Ministro da Magia. Você seria expulsa amanhã mesmo... – Gabriel disse me soltando. Ty me soltou também.
- Lobão tem razão, como sempre. Esse não é o momento. Quando conseguirmos expulsar o Ministério do “nosso território”, nós inventamos uma desculpa e eu juro que seguro Inês enquanto você arrebenta com a cara dela. – Ty completou e acabei sorrindo, nervosa.
- Afinal... O que ela disse que te deixou tão irritada? Ainda não aprendeu como ela é? Devia ignorar. – Gabriel aconselhou novamente, mas o cortei.
- Inês sabe sobre mim e Tiago. As coisas que ela disse e o tom de voz... Ela sabe sobre nós, tenho certeza. – respondi sentindo um nó na garganta e uma sensação de completa inutilidade sobre como agir.

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- Ela estava blefando para te deixar nervosa, Mi. É claro. Jogou verde para colher maduro. Usou a desculpa de sua blusa estar ao contrário para te confundir. Sério, não vejo motivos para estar tão preocupada com isso... Nós estamos seguros. Não tem como ela saber de algo. – Henri se aproximou mais para me abraçar, mas me distanciei imediatamente.

A voz de Inês dizendo “discretos” e “ética” ainda martelava em minha cabeça e eu conseguia ver seu olhar presunçoso queimando o meu. Embora meus amigos, e agora Henri, tentassem me convencer de que Inês só queria me atingir com suposições, eu tinha certeza de que ela sabia de algo.

- Eu não descartaria as fontes que ela tem tão fácil... – eu disse séria, me sentando na grande caixa de bolas. Mais uma vez, estávamos trancados no armário de vassouras do castelo, e ainda faltavam alguns minutos para a hora marcada do treino. Jean, Eugene, Simone e Edith logo chegariam por chave de portal.
- Não estou menosprezando. Mas não estou, também, superestimando. Mesmo que ela tenha boas fontes, nós estamos nos comportando muito bem. E, de qualquer maneira, não entendo qual seria o interesse dela para investigar nossa história. Se ela soltar alguma coisa, que duvido que saiba, vai se prejudicar também. E o pai dela, bem como o Ministério daqui, igualmente. Mesmo que não se lembrem agora, nós ainda somos de responsabilidade do Ministério da França, certo? – como continuasse com a testa vincada, ele se agachou na minha frente e sorriu. – Fique tranqüila: nós não estamos cometendo nenhum crime. Somos maiores de idade e, o fato de você ainda não estar formada, não nos acusa mais. Quando eu aceitei entrar nisso com você, sabia que seria difícil e que teriam conseqüências... Bem, se tiver que começar a pagá-las agora, não me importo.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que, se Inês souber alguma coisa e quiser compartilhar com todos, fique à vontade. Será a palavra dela contra a nossa. E, mesmo que ela consiga provar alguma coisa, e eu acabe sendo afastado do cargo de treinador (o máximo que podem fazer, já que você não é nenhuma criança que foi coagida), ele já não teria mesmo a menor graça no próximo ano, sem você.

Não pude responder, pois do lado de fora um estalo cortou o ar e ouvimos um grupo de vozes falarem alto ali perto. Henri me deu um beijo rápido e se levantou de um pulo, esticando os braços acima da cabeça.

- Agora, senhorita Hakuna, o seu time precisa que você esteja concentrada somente no pomo de ouro. Portanto, levante-se já dessa caixa, melhore essa cara e esqueça isso. E estou falando isso como seu treinador, enquanto posso ser tratado assim. – ele piscou e sorriu, me puxando para que ficasse de pé. – Coloque seu uniforme e não demore.

Saiu um minuto depois com a caixa de bolas nos braços, indo até o gramado se encontrar com os outros do time, já vestidos com o uniforme verde e preto da Nox. Ainda parada, observei-o sendo recebido com bastante empolgação por todos, enquanto conversavam sobre o avanço dos times nas partidas do Campeonato, e sobre a grande probabilidade que tínhamos de vencer. Um conflito em minha cabeça agora estabelecia minhas prioridades e, mesmo ficando com uma leve ponta de remorso quando terminei de listá-las, naquele momento, eu sabia que faria aquilo.

Se o problema era sermos “professor/aluna”, e se não suportaria vê-lo abandonar um emprego de que gostava tanto para assumir a culpa de tudo, sozinho, só havia uma maneira de quebrar essa nossa relação (antes que Inês pudesse espalhar qualquer coisa sobre nós): eu deixaria de ser aluna dele. Abandonaria o time da Nox imediatamente.

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