segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Dezembro de 1999:

- Posso entrar? – mamãe perguntou parando na soleira da porta. Abaixei o livro que estivera lendo até então, para observá-la.
- Desde quando você precisa de permissão para entrar no meu quarto? – perguntei assustada e rindo em seguida e ela sacudiu os ombros retribuindo o sorriso, entrando e sentando-se na beirada da minha cama. – Como estão os gêmeos?

Já tinha lido um par de vezes que a maternidade causa nas mulheres um “efeito inexplicável”. Mamãe conseguiu me fazer entender sem grandes dificuldades o real sentido dessa constatação. Desde que Keiko e Hiro haviam nascido, as recentes rugas e olheiras no rosto dela não eram suficientes para ofuscar o novo jeito que seus olhos brilhavam. O tal “efeito” não era somente físico. Era sensível.
Claro que mamãe nunca me dera o menor dos motivos para acreditar que, por ser sua filha adotiva, nossos laços eram mais fracos do que os laços sanguíneos que ela agora tinha com os dois. O jeito de nos amar, proteger e mimar não se diferenciava. Ela tentava equilibrar seu tempo com todos nós e Sergei - e estava tendo sucesso nessa área, pois ninguém reclamava sua atenção (ou a falta de atenção). A maior diferença estava nela mesma, no jeito como havia passado a agir; parecia mais madura, mais paciente, mais forte... Reparar isso me fez ficar feliz, pois eu senti que por mais preocupações que eles haviam adicionado em sua cabeça, agora ela se sentia completamente realizada, em todos os aspectos.

- Estão bem. Dormindo. Sergei chegou em casa há uns minutos e conseguiu domar a Keiko, que não queria dormir de jeito nenhum. Tem energia de sobra... Puxou a irmã.
- É. Levando em consideração que você e Sergei são super calmos e quietos, ela só pode ter puxado a mim mesmo... – completei irônica e rimos.
- Sabe... Sergei tirou alguns dias de férias do Ministério para as festas de fim de ano e estive pensando em nos aproveitarmos disso... Eu e você. Ele se ofereceu para tomar conta dos gêmeos esta noite, para podermos fazer um programa de “amigas”, como antigamente. O que você acha?
- Programa de amigas, como antigamente? – me animei instantaneamente, sentando mais reta na cama. Mamãe percebeu e riu concordando com a cabeça. – Posso saber o que tem em mente, “cérebro”?
- Nada muito “agitado”, porque essa sua amiga aqui já está um tanto velha para badalações pesadas. Meu melhor plano envolve a casa de Kyoto, pijamas, guloseimas (entenda como doces, doces e mais doces), fofocas, confidências e nascer do sol. Claro que podemos modificar um pouco essa lista, mas ela me agrada muito.
- Ok, só uma pequena modificação: guloseimas, BEBIDAS, fofocas, confidências e nascer do sol. Feito?
- Perfeito. Só não beba demais ou sua mãe poderá pensar que sou eu quem está te ensinando essas coisas... O que seria uma bela calúnia.
- Você tem razão. Mamãe é muito “à moda antiga”, sabe?

Ela riu e me puxou para um abraço apertado, que mantive por longos minutos. A maternidade fora a melhor coisa que tinha acontecido na vida dela, definitivamente. Mas pelo menos por uma noite, ela não queria ter que administrar mamadeiras e fazer vigília ao lado dos berços, e sim, voltar aos seus tempos de adolescente, onde os maiores problemas eram NIEM’s, garotos e o resultado da Copa de Quadribol.
E no que dependesse de mim, a nossa “noite das garotas” iria ser bastante movimentada de assuntos...

ººººº

- Como você e Sergei se conheceram?
- Alex nos apresentou, em um dos Bailes do Dia dos Namorados de Hogwarts. – mamãe se deitou no tapete da sala, em frente à lareira e encarou o teto com um olhar vago, sonhador. Se virou pra mim, deitada ao seu lado, rindo. – Ele era tão bonito!
- Era? – perguntei sarcástica bebendo mais um gole de cerveja amanteigada. – Sergei continua lindo. Na idade dele, conservar aquele físico...
- Você está muito “saidinha” mocinha. – Ela interrompeu fingindo censura, mas rimos e ela concordou com a cabeça. – Ele ainda é, realmente. Meu russo é cheio de charme. E umas coisinhas a mais... – rimos.
- Vocês se gostaram desde o primeiro minuto? – perguntei interessada e soube que não haveria momento mais oportuno para conversar tão abertamente com mamãe do que aquele, onde só estávamos nós duas, bêbadas e nostálgicas.
- Sim. Mas é claro que eu não fazia nem idéia de que ele seria “o homem da minha vida”. Foi mais... físico mesmo, entende? Mas ele me chamava mais atenção do que os outros “garotões” do castelo. Era mais inteligente, maduro... tinha mais atitude! Acho que causei a raiva de muitas invejosas, sabia? Tiago Potter, Sergei... Elas definitivamente me odiavam.

Rimos e brindamos mais uma vez, batendo de leve nossas garrafas de bebida. Tomei mais um gole e continuei encarando o teto. Ficamos em silêncio uns minutos, ouvindo as chamas crepitarem na lareira, até ela se virar para mim curiosa:

- E você? Não tem nada para me contar? Nenhum pretendente?

Senti meu estômago gelar e ficar enjoado com a cerveja amanteigada quente que havia acabado de chegar ali. Não me mexi por vários segundos, paralisada.

- Miyako! Você está namorando? – mamãe se sentou abruptamente no tapete, mas aparentemente ficou tonta com a brutalidade do movimento e fechou os olhos. A encarei assustada.
- Não! Porque você achou isso?
- Você não respondeu! Achei que estivesse escondendo alguma coisa de mim... – ela colocou a mão no peito, dramaticamente, e voltou a se deitar parecendo aliviada.
- Não estou namorando. Eu te contaria uma coisa dessas!
- Espero que sim. Não queira me matar tão jovem... – forcei um sorriso e ela insistiu. – Nada? Ninguém? Tem que ter alguém interessante naquele castelo, não é possível! Ainda mais esse ano, que são três escolas misturadas...
- Tem alguém! – eu disse depressa sem medir as palavras e ela novamente se movimentou rápido demais. Dessa vez, para virar a cabeça para me olhar, os olhos arregalados. – Mas não vai dar certo. Ele não sabe de nada. Na verdade, nem eu sei... Pode ser só um “amor platônico”. – completei desanimada e ela pareceu murchar também.
- Mas vocês já conversaram? – acenei positivamente com a cabeça e ela pareceu se animar novamente. – E você não percebeu nenhum sinal dele? Alguma coisa que ele disse ou...
- Nada. – respondi categórica e ficamos em silêncio, nos encarando. Involuntariamente, me senti flutuar pra longe dali e me lembrei da noite do Baile de Inverno, onde eu e Henri tivemos nossa primeira conversa onde não éramos professor e aluna e o assunto não era quadribol. De fato, ele não tinha dado nenhum sinal.
- Ok, não vou deixar você se desanimar assim tão fácil! – mamãe falou empolgada. – Me conta tudo! Qual o nome dele? Como ele é? – ela me sorria sincera e ri.
- Ele é lindo. Com certeza, eu atrairia a raiva de muitas invejosas também, caso ficássemos juntos... Tem dois olhos verdes, sabe? Aqueles que parecem te perfurar, de tão intensos e... – percebendo a expressão dela que mesclava gozação com interesse, me controlei, um pouco constrangida. – O nome dele é Henri.
- Henri? – ela repetiu sufocando a vontade que deveria estar tendo de soltar um meloso “minha filhinha está apaixonada”. Agradeci mentalmente. – Então ele é francês mesmo? Beauxbatons? – concordei com a cabeça. – Porque demorou tanto a reparar nele?! É da sua turma?
- Não. Quadribol. – respondi simples e com medo de ela estender as perguntas, mas pareceu suficiente porque seus olhos brilharam de compreensão.
- Agora entendi porque você estava tão interessada em ler livros de quadribol nas férias...
- Eu sempre gostei de quadribol, mamãe!
- Eu sei. Mas como um “hobby” casual. Nunca teve muita paciência pra ficar lendo livros sobre isso. Estou falando alguma mentira?

Como não respondi, ela entendeu que o que estava falando era a mais absoluta verdade. Eu realmente passara a ler mais livros sobre quadribol, pois pelo menos assim, sempre teria motivos para conversar com ele após as aulas. Mesmo que fossem táticas e estratégias de jogo.

- Conversar com ele sobre isso vai sempre manter vocês dois unidos, mas... Se você não quer que ele seja só um bom amigo ou colega de time, não é suficiente, Mi. Se ele ainda não te deu sinais, eu interpreto isso de duas maneiras: ou ele gosta de você e também acha que não tem nada a ver, por isso fica com medo de demonstrar alguma coisa, ou ele te vê como todas as outras amigas, por isso não demonstra nenhuma reação diferente. Você é quem tem que demonstrar então! Se ele não tem atitude, tome você uma. Não é feio uma garota demonstrar que gosta de um garoto... Feio é se acovardar e deixar passar, se arrepender do que não fez e poderia ter feito.
- Demonstrar? Como? Mãe, você sabe que não sou muito corajosa quando entramos nesse departamento... – falei sincera sacudindo os ombros desanimada.
- Não é difícil. Basta deixar claro por meio de algumas ações ou palavras de que você gosta dele de uma maneira diferente da que gosta dos seus amigos. Fique mais tempo na companhia dele, converse sobre outros assuntos. Coisas que você gosta. Não se limite ao tempo que passam juntos no campo de quadribol tendo que ficar focados somente nos jogos e campeonatos. Promete que vai tentar? – ela insistiu me olhando convincente e acabei concordando, embora já estivesse desanimada. Nós não tínhamos mais tempo juntos.

Escondi o desânimo e para mudar de assunto, perguntei para ela sobre como tinha sido a festa de formatura da turma deles, lembrando que a nossa estava cada dia mais próxima. Ela se empolgou na mesma hora e começou a contar com detalhes como tinha beijado tio Scott na frente de todos e estragado o tango. O resto da noite passou voando e depois que o sol nasceu em Kyoto, finalmente nos entregamos ao sono por algumas horas, antes de termos que voltar para Tókio e para nossas vidas normais.

ººººº

- Porque você está tão apressada, Mi? – Griffon perguntou andando rápido ao meu lado, para conseguir me acompanhar. Chuck em seu colo, brincando com um pacotinho das Gemialidades na mão, mas não prestei bem atenção no que era.
- Porque ele já deve estar aqui! Quero encontrá-lo um pouco antes do treino... – atravessamos depressa as várias torres e o campo de quadribol foi se aproximando. Griffon sorriu ao entender de quem estava falando.
- Vocês... Como estão? Algum avanço? – perguntou maroto e me virei brava para olhá-lo, surpreendendo Chuck com uma bomba de bosta nas mãos. Puxei-a depressa e ele ameaçou chorar, mas se distraiu quando substitui por seu chocalho.
- Você sabe que não tem como temos “avanços”! Não comece com as piadinhas... E procure manter o Chuck afastado de qualquer coisa destrutiva. Já temos problemas demais sem termos que explicar porque “nosso bebê” soltou uma dessas no jardim. – ele mordeu os lábios ainda se divertindo e avançamos.

Meu coração deu um pulo quando entramos no gramado do campo. Do outro lado, avistei Henri sozinho, analisando a prancheta concentrado. Jean, Simone, Eugene e Edith ainda não haviam chegado com a chave de portal, e Charles e Augustin provavelmente só sairiam de dentro do castelo quando faltassem poucos minutos para a hora do treino. Era uma oportunidade de ouro. Me virei ansiosa para Griffon.

- Ele está sozinho!!!
- Vai lá! Aproveita! É uma chance única, Mi... – ele incentivou e apertei minhas mãos, sentindo-as geladas. – Vou levar Chuck de volta para a Avalon e pedir para que Luna dê uma olhada nele. Quero me encontrar com Isaac. Tem um auror ali na arquibancada para assistir o treino... Ele pode te acompanhar até a Avalon depois, se você quiser. Se não tiver outra companhia. – deu uma piscadinha zombeteira e fiz uma careta rindo e o empurrando para fora do gramado. Quando ele e Chuck sumiram de vista, respirei fundo e avancei decidida até Henri, sorrindo. Ele levantou a cabeça quando fiz sombra sobre ele e sorriu.
- Miyako! Como vai? Animada para o último jogo desta rodada?
- Oi, professor.
- Henri. Ainda não estamos no horário da aula, esqueceu? – ele perguntou simpático e concordei com a cabeça, me sentando ao seu lado, porém mantendo uma distância considerável.
- Henri. – corrigi e sorrimos. – Estou bem, apesar de todos os problemas... a partida da semana que vem me parece até fácil, perto de todos eles. – fiquei séria e não consegui esconder o cansaço e a preocupação. Ele notou e ficou sério também.
- Quer conversar? – ele largou a prancheta no banco sem desgrudar os olhos de mim.
- Ah, são só todas essas coisas que estão acontecendo por aqui. Você deve ter ouvido falar, não? Os vampiros e a censura do Ministério... Ontem eu e meus amigos abandonamos o jornal da escola. Até a peça de teatro vamos ter que ensaiar às escondidas. E o Gabriel, sabe, o campeão de Beauxbatons... é um dos meus melhores amigos. Estou preocupada com a segunda prova. Ele também não está tendo muito tempo para se preparar para o Torneio, especificamente. – só quando percebi que estava falando sem parar e ele estava escutando tudo com atenção é que comecei a rir de mim mesma. – Desculpa. Estou falando sem parar.
- Não, tudo bem. Não me importo. Na verdade, sou um ótimo ouvinte... Só não me peça para te dar conselhos. – ele sorriu também e ficamos nos encarando vários segundos, que para mim, pareceram ter acabado em um piscar de olhos.

Ele esticou sua mão lentamente e a pousou sobre meu ombro, apertando-o de leve. Uma onda de calor intenso percorreu meu corpo inteiro, dos ombros aos dedos dos pés, e ele estava um pouco mais perto. Seus olhos me perfurando e eu sentindo meu rosto arder.

- São muitos problemas e é natural que você esteja abatida e preocupada, mas não pode se entregar. Vai dar tudo certo. – ele disse brando e concordei com a cabeça, ensaiando um sorriso que foi cruelmente ofuscado pelo que ele abriu em seguida. Sua mão soltou meu ombro e ele se afastou um pouco, pegando novamente a prancheta, mas ainda me olhando. – Então... desistiram do jornal? – seu tom de voz voltara a ser casual e acordei do transe.
- Sim. O Ministério está nos censurando e não vamos abaixar a cabeça. Vamos abrir um jornal “alternativo”, mas ainda não sabemos muito bem como vamos fazer para imprimi-lo e quais vão ser as matérias, mas é a maneira que encontramos de desafiar. – a cada palavra ia readquirindo a força nas palavras e fiquei satisfeita por essa recuperação.
- Um jornal oculto? Caramba! Eles não vão ficar nada felizes quando lerem isso, hein? – ele perguntou bastante interessado e riu. – Quero uma cópia deste! Guarde para mim quando publicarem...

Mas não deu tempo de responder. Ouvimos um barulho no meio do gramado e quatro figuras se materializaram ali, cada uma segurando uma vassoura. Augustin e Charles também já vinham entrando no campo, conversando. Henri ficou de pé em um salto e eu também, assustada. Me juntei ao restante do time quando ele nos cumprimentou e começou a repassar nossa atual situação no Campeonato e as instruções para o treino e para o jogo contra a Othila, de Durmstrang, que definiria o primeiro colocado da chave (já que Lufa-Lufa já tinha sido desclassificada). Escutava tudo calada ao lado dos demais, mas não prestava atenção. Uma voz em minha cabeça dizia “esquece, Cinderela. A meia noite já chegou, a carruagem já virou abóbora, e o príncipe encantado é seu professor”.

1 hora depois...

- Então é isso. Revisem esses pontos que apontei e acho que vocês têm grandes chances de vencerem a Othila. O time está mais bem estruturado que o da Lufa-Lufa, mas perto de vocês... Bom, faço minha aposta. – ele sorriu incentivando e todos nos animamos. – Boa sorte. Estão dispensados.

Instantaneamente o time começou a dispersar. Jean, Simone, Eugene e Edith se preparavam para pegar a chave de portal de volta a Beauxbatons. Charles e Augustin voltavam para o castelo e eu caminhava até o vestiário para tirar o uniforme do time.

- Miyako... – Henri chamou e me virei depressa para olhá-lo. – Espero que você fique bem. Estou à sua disposição se puder ajudar em qualquer coisa, ok?

Sorri sem graça concordando com a cabeça e virei novamente as costas. Seth e Luna vinham descendo das arquibancadas de mãos dadas, acenando pra mim.

- O que fazem aqui? Não deviam estar com os bebês?
- Estão todos dormindo. – Seth disse e Luna sorria. – Assistimos o final do treino de vocês. Estão jogando bem!
- Ah... é... ainda temos que melhorar algumas coisas mas... – comecei um pouco desconcertada e desisti da idéia de ir ao vestiário. Saímos juntos do campo em direção às repúblicas.
- Ele gosta de você. – Luna me cortou serenamente, me encarando. – O professor. Gosta de você.

Olhava dela para Seth, assustada. Ela sorria de maneira tão leve que me assustou um pouco.

- Hã...é, ele disse que sou uma boa apanhadora. Só tenho que prestar mais atenção, pois me distraio algumas vezes e...
- Não, não estou falando nesse sentido. Estou falando que ele estava sorrindo para você da mesma maneira que Kam sorria para mim. E você também gosta dele, não gosta? – ela perguntou certeira e senti minha perna balançar. Como não respondi, Seth fez isso por mim.
- Gosta. É tão louca quanto o Griffon. Não é à toa que tenham ficado como um casal para o projeto... Dois malucos. – Luna riu, mas continuei sem reação, pensando no que Luna havia dito e dividida entre a vontade de acreditar naquilo e na sensatez de duvidar que um sorriso pudesse ser tão “diferente”. Mas antes que pudesse decidir, Seth se agitou ao meu lado. – Papai está no castelo! Vamos! - Puxava a mão de Luna e andava apressado. Eu corri para acompanhá-los.

A presença do tio Lu ali foi um grande alívio para todos nós e veio na hora certa, pois minutos depois Durmstrang se viu cercada por vampiros. Durante um bom tempo, o desespero e o medo pareciam ter varrido todo o resto para fora da cabeça e o que Luna disse, acabou se perdendo no ar.

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