[Maio/Junho de 2000 \\ Lembranças de Miyako Kinoshita]
- Desculpa Mi, mas acho que não entendi direito o que você disse... Você vai o quê? – Gabriel abaixou o livro de Sereiano que estava lendo para me encarar com os olhos levemente arregalados. Balancei as mãos com impaciência e repeti com o mesmo tom de voz urgente de antes.
- Vou sair do time da Nox. Quis contar para vocês antes de anunciar para o restante do meu time e para Henri, e vão ser os únicos a não serem pegos de surpresa pela minha decisão. Eu sei que é uma atitude um pouco exagerada e precipitada (já que vou abandonar a disputa quando estamos prestes a nos classificarmos para as fases finais...), mas é a única opção que eu vejo para que “ele” não leve a culpa toda sobre “aquilo”, caso Inês espalhe alguma coisa por aí... – eu falava depressa e aos sussurros e, vez ou outra, olhava ansiosa por cima dos ombros para acompanhar o movimento dos alunos que entravam e saíam da biblioteca.
- Ah, cale a boca! – Ty respondeu alto e algumas pessoas da mesa ao lado nos olharam com censura. Fiz uma careta e me virei brava pra ele, que não se alterou. – É, isso mesmo. Cale a boca. – Ty repetiu aos sussurros. – Que você é louca e não tem juízo, nós já estamos cascudos de saber desde a maternidade. Mas você nunca foi covarde Miyako. Não é agora que vou aceitar que seja e assistir calado.
- Eu NÃO estou sendo covarde Tyrone. – aumentei meu tom de voz um pouco e Gabriel fechou o livro, já se preparando para uma possível discussão. - Estou fazendo o que acho mais fácil (e certo) a se fazer, para não ter tantas dores de cabeça em um futuro próximo... Desculpe, mas agora estou pensando
- Para mim, não há outro adjetivo que defina isso. Se você ao menos tivesse motivos CONCRETOS para se basear, mas... Abandonar o seu time, que tanto está lutando e trabalhando junto (grande parte deles são seus amigos, se lembra?), por uma teoria que até agora vem se provado totalmente vã? Isso é covardia. Acredite em mim, sei por experiência própria.
Meus punhos novamente estavam fechados e pressionados em cima dos meus joelhos, e eu sentia uma dor incômoda neles. As palavras de Ty também passavam por mim como facas – afiadas e certeiras. Franzi a boca e não conseguia responder nada. Ty me encarava inalteradamente, e acabei desviando os olhos pra Gabriel. Ele me avaliou alguns segundos, antes de começar a falar com tranqüilidade:
- Ty tem razão sobre isso Mi, e você vai ter que concordar. Nós dois sabemos o que é se apaixonar por alguém, e o que somos capazes de fazer por isso. Não estamos te recriminando por ter se apaixonado por “ele”, e nem por estarem juntos ou fazerem planos juntos para o futuro... Mas, você está sendo um tanto radical, tola e covarde. – Abri a boca para responder, mas ele cortou. – Calma. Deixe falar tudo e então, depois, eu vou te escutar. – Concordei com a cabeça, contrariada, e ele trocou um breve olhar com Ty antes de continuar. – Vamos ser racionais e analisar toda a situação, como se deve, ok? Por tópicos. Primeiro: como já foi dito algumas vezes, vocês não estão infringindo lei alguma dos códigos bruxo e trouxa. Segundo: Inês é mimada e acostumada a ter tudo nas mãos. Você atinge alguns pontos fracos dela quando consegue manter ao seu redor várias pessoas que, de fato, gostam de você. É claro que ela tem inveja, e é claro que vai tentar te atingir e te humilhar, como faz com todas as outras pessoas. Inês é desagradável o tempo todo, com todos – ou, pelo menos, com a grande maioria. Não vejo que motivo ela teria para te escolher como alvo de uma investigação qualquer. Terceiro: aderindo à sua “teoria da conspiração”, vamos supor que ela realmente saiba alguma coisa. Por que está guardando então? Ela se prejudicaria tanto quanto (ou mais) que qualquer um de vocês. O fato de você ficar tão preocupada com as provocações dela, só prova a ela que há algo em que talvez valha à pena investigar. E, se você sair do time de quadribol agora, sem nenhuma explicação convincente o suficiente, além de causar um grande tumulto e transtornos na sua vida, e com seus colegas de time, também vai dar a ela e a todos os outros vários curiosos um bom “ponto de partida”.
Quando Gabriel finalmente parou de falar, eu me sentia tonta. A veracidade das análises dele chegou a mim com um impacto sobrenatural. Por uns segundos eu não consegui dizer nada e nem mover um único músculo, até que tivesse digerido todas elas por completo e me dado conta do quanto eu estivera agindo como uma verdadeira idiota. Senti os dois me olhando o tempo todo, mas me demorei um pouco mais até reagir. Sem poder controlar, comecei a rir.
- É sério que eu pensei nisso?! E vocês estão gastando todo esse tempo para, pacientemente, me mostrarem o quão maluca eu estou? Me internem. Sério. – eu dizia em meio às risadas. Gabriel pareceu um pouco transtornado e preocupado de início, mas quando Ty bateu na própria testa e começou a rir também, ele girou os olhos e nos acompanhou.
- Eu te disse que, desde que está bancando a “mulherzinha apaixonada”, Mi anda mais maluca e sem juízo do que sempre foi, Lobão.
- Não sei por que eu ainda levo a sério essas insanidades, e gasto meu tempo. Da próxima vez que vier com uma estupidez sem sentido, vou logo enrolar em uma camisa de força e resolvido o problema.
- Está vendo? É por isso que amo vocês e, mesmo no maior grau de insanidade, ainda os consulto antes sobre meus próximos passos... – disse rindo e os abraçando de uma só vez. – Não fiquem com ciúmes, ok? Vocês sempre vão ser os homens da minha vida.
- Não se preocupe com isso. Eu me garanto. – Ty respondeu deixando a pouca modéstia de lado.
- Eu também, mas... Agora será que podemos voltar a estudar pros NIEM’s e tentar restabelecer algum grau de seriedade aqui?! Não quero ser o “homem da vida” de ninguém, desempregado. E não quero ser expulso da biblioteca também. Sou um “campeão” do Tribruxo, tenho uma imagem – já bastante denegrida – a zelar.
Gabriel disse forçando uma expressão séria e precisei morder a mão para abafar a risada.
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É claro que, como o restante do ano, o mês de maio passou voando por nós. Depois de finalmente conseguirmos expulsar o controle do Ministério sobre Durmstrang, ficou provado para mim que abandonar a equipe de quadribol por causa da Inês teria sido a maior estupidez da minha vida. (Durante o movimento de greve que fizemos, Inês se uniu a nós contra o próprio pai e, por isso, agora desfrutava de ótimas oportunidades de conquistar novos amigos - e até estava sendo simpática com todos que se aproximavam).
Com a nossa vitória em cima da Sonserina (casa de Hogwarts), conseguimos nos classificar para as semifinais do Campeonato, e agora realmente começávamos a ansiar pela taça. O jogo seria contra outra casa de Hogwarts, dessa vez a Grifinória (time de Gina, e um dos mais cotados para o título), e os últimos treinos antes da partida tinham então adquirido uma espécie de “obsessão” em cima de cada característica de cada jogador. Henri queria nos preparar para nos adequarmos às maneiras particulares que cada um deles possuía em campo, e não às táticas que usariam. (Essa técnica fez Charles nos descrever como “atletas sombras” quando estudávamos as fichas de resumo que Henri havia feito durante todas as partidas que acompanhara dos adversários).
No dia do jogo nos sentíamos preparados e confiantes e parecia que nada – nem a afinidade de todos do time adversário, nem as jogadas cronometradas que faziam – iria abalar a superioridade que demonstramos desde o começo. Jean, Augustin e Eugene voavam e atacavam com tanto entrosamento que abriram, sem dificuldades, 30 pontos no placar. Porém, logo os artilheiros da Grifinória buscaram reações, e uma acirrada disputa agitava as torcidas que lotavam e gritavam nas arquibancadas. O clima fazia parecer com o de uma final de campeonato...
[...]
Apesar de não chover, o céu estava um tanto fechado e com neblinas densas e altas cobrindo todo o castelo. Tentava manter o foco nos espaços limpos que conseguia enxergar entre uma nuvem de fumaça e outra, mas, à medida que o jogo – e os placares – avançava, encontrar o pomo de ouro no meio de todo aquele “cinza” estava se mostrando uma tarefa tão difícil quanto encontrar agulha no palheiro.
Gina também parecia tão desanimada quanto eu, e acabávamos trocando olhares e gestos de cumplicidade cada vez que nos cruzávamos nas rondas pelo estádio, até que...
Foi em uma fração de segundo. Cansada de forçar os olhos para enxergar em meio às nuvens, me deixei distrair um minuto para ver quanto estava o placar: Nox liderava a partida por 90 X 70, mas lá embaixo os borrões dos dois times voavam com tais velocidades que pareciam totalmente alheios ao fato de que o pomo se escondera das duas apanhadoras. Foi quando acompanhava Jean avançar em direção aos aros que o vi. Uma pequena esfera brilhosa e dourada passou cortando o ar bem próximo de onde Jean rasgou paralelamente, um segundo depois. Fiquei tão em dúvida sobre o brilho que, quando resolvi reagir, percebi que minha manobra para baixo foi chamativa demais e Gina estava ao meu encalço poucos segundos depois.
O pomo voava velozmente por entre os jogadores, mas sempre em direção contrária ao fluxo que a partida estabelecia. Inclinei-me mais sobre a vassoura a fim de aumentar a velocidade, diminuindo a resistência do vento contra meu corpo, e deu certo. Agora eu estava bem próxima do pomo, poucos metros acima do chão, e só conseguia vê-lo na minha frente. Sabia que Gina estava quase emparelhada ao meu lado, mas eu iria agarrá-lo primeiro. Era só uma questão de esticar mais um pouco e ele bateria contra minha mão...
Mas isso nunca chegou a acontecer. Pois eu me lembro de já me preparar para agarrá-lo quando senti uma dor aguda no estômago me atingir, me deixar sem fôlego, e me lançar para trás fazendo com que eu caísse em um impacto mudo no gramado fofo do campo. E então tudo ficou escuro.
***
Quando abri os olhos demorei a conseguir focar o cenário (completamente novo) à minha volta. Paredes brancas, cortinas brancas nas janelas e ao redor de todas as outras camas – igualmente brancas – ao meu lado. Era óbvio: eu estava na enfermaria. E com essa conclusão, pouco surpreendente, também logo me lembrei de todos os outros eventos anteriores e me agitei entre os travesseiros. Alguém se movimentou com agilidade do meu lado e uma mão quente agarrou a minha com força. Era Henri.
- Você... – eu abri um sorriso sincero quando ele se esticou sobre meu campo limitado de visão (uma vez que eu tinha uma bolsa térmica sobre a testa impedindo que enxergasse muita coisa) e ele retribuiu parecendo aliviado.
- Como se sente? A cabeça está doendo muito? E o estômago? Você caiu de uma maneira... Grotesca. – Ele disse aos atropelos apertando um pouco mais minha mão.
- Estou bem, eu acho. Nada está doendo. Como eu caí? O que aconteceu?
- Bem... Você se endireitou na vassoura pra se preparar para pegar o pomo, mas esqueceu que estava em meio a uma partida violenta de quadribol. Acabou sendo atingida na boca do estômago por um balaço feroz que os batedores da Grifinória lançaram. Não teve tempo nem de vê-lo chegando e já estava rolando no gramado do campo, inconsciente.
- É, só lembro o impacto no estômago. – Fiz uma careta massageando a barriga e Henri riu. – Então... Isso quer dizer que eles ganharam. Grifinória está na final do torneio e a Nox foi eliminada. – disse mais como um pensamento alto e senti um gosto amargo na boca.
- Sim, mas não se preocupe com isso. O time não está chateado, e não vejo motivo para estarem... Vocês jogaram muito bem, mas não tinham como prever isso. Para os que quiserem continuar na carreira, tenho certeza de que posso conseguir alguns testes em times profissionais. – Henri sorriu confortante e me senti melhor.
Magali deve ter escutado nossas vozes, pois saiu de sua sala para conferir se eu tinha acordado. Henri soltou minha mão e nos olhamos um pouco tensos, mas a enfermeira parecia agitada demais para ter percebido nossas reações.
- Como se sente? – ela perguntou direta, tirando a bolsa térmica da minha testa e acendendo uma lanterninha nos meus olhos. Fechei-os imediatamente e senti uma pontada dolorida na cabeça.
- Estava bem, mas agora... – respondi a verdade e ouvi Henri soltar uma risadinha abafada ao meu lado.
- Quadribol! Não entendo o que tanto gostam nesse esporte de trogloditas...! – Madame Magali resmungava baixinho enquanto recolocava a bolsa térmica na minha cabeça, um pouco mais gelada. – Deve estar bem até amanhã de manhã, mas vai ter que passar essa noite aqui. Pode ir professor, eu tomo conta dela agora. E quando estiver saindo pode, por favor, liberar os senhores Lupin e McGregor para entrar aqui? Eles não vão parar de me atormentar se não os deixar visitá-la pelo menos por um instante. – ela revirou os olhos impaciente e voltou para sua sala. Henri se levantou.
- É melhor eu ir. Passei o tempo todo aqui do seu lado e, se ficar mais, ela pode começar a desconfiar que não esteja só preocupado com o estado da minha aluna... Nos vemos amanhã, ok?
- Ok. Se não tem mesmo outra maneira. – falei fazendo drama e ele riu.
- Agora falta muito pouco para você se formar e podermos acabar com tudo isso. Só precisamos de um pouco mais de paciência e então não teremos mais que esconder de ninguém que queremos ficar juntos.
- Você está certo. Tem razão. Só mais alguns dias e então isso tudo vai estar acabado.
Henri concordou com a cabeça e me deu um beijo na testa antes de sair da enfermaria. “Só mais alguns dias e tudo ficaria bem”, eu pensava comigo mesma querendo acreditar que seria verdade...
We’re both pretty sure,
Neither one can tell
We seem difficult
What we got is hard as hell
And we are leaving some things unsaid
And we are breathing deeper instead
And we are leaving some things unsaid…
The Fray – Unsaid