segunda-feira, 16 de março de 2009

Da penseira de Miyako Kinoshita

28 de fevereiro de 2000.

As arquibancadas do estádio de quadribol de Durmstrang já estavam lotadas de alunos das três escolas, que aprontavam uma verdadeira algazarra enquanto gritavam e cantavam juntos, fazendo o chão do vestiário levemente tremer. Eugene se movimentou inquieto ao meu lado no banco e ri. Em poucos minutos entraríamos em campo para jogarmos contra a Othila (um dos times mais bem cotados da casa) e apesar de já estarmos classificados para a segunda rodada do campeonato (uma vez que a Lufa-lufa de Hogwarts havia perdido os dois jogos, sendo a eliminada de nossa chave), vencer essa partida significaria assumir o primeiro lugar de nosso grupo. Não era fundamental, mas nos daria algum benefício para as próximas partidas.
Terminava de arrumar minhas luvas nas mãos enquanto fazia esforço para escutar as últimas instruções de Charles para o time, mas estava sendo praticamente impossível devido ao barulho ensurdecedor. Quando ele se deu por vencido, limitou-se a se aquecer em um canto e ficamos novamente em silêncio. A voz levemente rouca de Viggo Volkov sobressaltou-se nos auto-falantes por todo o estádio fazendo a arquibancada se calar para ouvir as saudações.

“Marcando a última partida desta primeira rodada do Torneio Tribruxo ‘Entre-Casas’ de Quadribol, o duelo hoje está pontuado entre a Othila de Durmstrang (a algazarra recomeçou frenética) e a Nox de Beauxbatons, ambas as equipes já classificadas para a próxima etapa e lutando apenas para o primeiro lugar de sua chave. Lembrando a todos que as quartas de final começam a partir do dia...”

Charles fez sinal para que nos aproximássemos e formássemos um círculo, unindo uma das mãos e soltando o grito de guerra. Depois começamos a nos organizar em fila à espera do anúncio de nossos nomes. Me posicionei atrás de todos eles, ansiosa. Era impossível não sentir cócegas no estômago antes dos jogos de quadribol, por mais amistosos que fossem. Estava concentrada escutando os nomes dos jogadores do time adversário que já entravam em campo, quando Henri apareceu, animado.
Meu coração disparou mais dois compassos por batida e senti o sangue correr fervendo por todo o corpo quando ele andou pela fila, parando-se ao meu lado e sorrindo, uma das mãos em meu ombro direito.

- Então... preparados para vencerem? – ele perguntou empolgado e consegui identificar um leve tom de sarcasmo na voz, pois ele ria da expressão pálida de Eugene e da careta de Charles. Simone foi a única que pareceu confiante o suficiente para sacudir a cabeça em afirmação (eu também estava otimista para o jogo, mas sua mão quente em cima do meu ombro não me deixava agir voluntariamente). – Animem-se! Vocês estão jogando muito bem! Vão vencer, podem apostar. Eu já fiz isso com o Viggo e não estou disposto a perder dois galeões, entenderam? Confio em vocês. Boa sorte. – ele deu uma piscadinha e todo o time riu se revigorando.

Do lado de fora, Volkov preparou a torcida para nossa entrada e todos montaram as vassouras. Todos, menos eu, que parecia em choque. Percebendo que não me movimentava, Henri puxou meu braço com delicadeza alguns passos para trás me afastando do restante do time. O nome de Charles foi anunciado e de relance o vi dando um impulso com a vassoura e ganhando o ar sendo o primeiro a desaparecer do vestiário.

- Miyako? – ele perguntou cuidadoso e ao som de sua voz tão próxima do meu rosto levantei os olhos para encará-lo. Seus olhos verdes não brilhavam, mas me analisavam curiosos. – Você está bem? – Jean foi o segundo a sumir.
- Estou. – respondi com a voz um tanto aguda de susto, voltando à consciência quando o nome de Augustin explodiu e ele seguiu Jean como um raio. Henri sorriu parecendo aliviado. – Me distraí. – disse sincera e ele apertou um pouco mais meus braços, ainda me olhando.
- Você vai se sair bem.

Nos encaramos por vários segundos, intensamente. Ele me transmitiu uma enorme sensação de paz e confiança (que não experimentava há muito tempo) e não pude deixar de sorrir abertamente por isso. Ele retribuiu. Quando desviou seus olhos, pareceram alarmados e também olhei o vestiário. Eugene e Simone já haviam sumido e só restava Edith que desapareceu antes que pudesse me preparar.

- Depressa! Já vão te anunciar! – ele disse agitado me dando um leve empurrão para frente.

Mal tinha montado a vassoura quando ouvi meu nome do lado de fora. Não olhando mais para trás, dei impulso no chão e a vassoura subiu rápida, vários metros, ganhando o campo. Um vento gelado cortou meu rosto, me tirando totalmente do transe e me concentrando nos aplausos da torcida enquanto dava uma volta completa esperando o início da partida.

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O pomo de ouro estava seguro na palma da minha mão quando o apito de Madame Hooch atingiu meus ouvidos, encerrando a partida. Estendi o braço sorrindo abertamente para o restante do time, que também subia as vassouras na minha direção para me abraçarem. Havíamos vencido o jogo com larga vantagem em cima da Othila e a parte vestida com uniforme azul da arquibancada saltava alucinada. Madame Máxime liberou para Simone, Eugene, Jean e Edith mais algumas horas até que tivessem de voltar a Beauxbatons e Augustin programava animado uma ida até o bar do vilarejo que educadamente dispensei.
Apesar de estar satisfeita com nosso resultado na primeira etapa, não me senti suficientemente empolgada para acompanhá-los e estender a comemoração. Primeiro porque sabia que ainda teríamos jogos muito mais difíceis pela frente, mas principalmente por me sentir exausta. Os últimos meses caíam em cima de mim como um grande e pesado saco de areia nas costas e agora que eu finalmente começava a espalhar um pouco de seu conteúdo pelo chão, sentia meu corpo todo amolecido. Meus planos mais ambiciosos para aquele fim de semana se baseavam em me recolher na Avalon, abraçada ao travesseiro e torcendo para que, com sorte, não acordasse assustada por pesadelos envolvendo um grupo de vampiros me cercando, mascarados marcando minha pele com fogo ou sendo presa por desrespeitar as novas leis do Ministério (o que agora era praticamente comum acontecer), e eu pudesse ter algumas horas de descanso absoluto.

Me despedi do restante do time e da maior parte dos meus amigos (que também já seguia para o vilarejo) e me arrastei até o vestiário. O estádio agora em silêncio. Despi o uniforme do time preguiçosamente e ainda não tinha vestido a outra roupa quando ouvi alguém se aproximar assoviando. Assustada, puxei meu casaco do armário me enrolando da melhor maneira que pude nele, esperando. A única pessoa que desejei mentalmente não entrar ali foi justamente a que parou estupefata na porta alguns segundos depois me avaliando de cima a baixo, confusa.
Henri se demorou vários segundos na mesma posição e meu rosto agora ardia, mas também não mexi nem um músculo e o olhava constrangida. Quando ele pareceu perceber o que tinha acontecido, sacudiu a cabeça.

- Desculpe Miyako, eu não sabia que você ainda estava aqui e... pensei que tivessem ido todos para o vilarejo... – ele se explicava depressa, ainda transtornado. Continuei paralisada. – Vou sair. Desculpe.

Virou as costas rapidamente e desapareceu. Esperei vários segundos (ou minutos), estática, escutando do lado de fora, mas novamente não havia nenhum som. Ainda enrolada no casaco, fui até a porta, fechando-a e encostando a testa na superfície metálica e gelada dela, tonta. Demorei mais um bom tempo até finalmente correr até o armário e me vestir.
Agora, mais do que nunca, queria sumir no conforto silencioso e solitário da minha cama, mas novamente meu plano de fugir foi frustrado, pois assim que sai do vestiário vi Henri sentado na primeira fileira da arquibancada me esperando. Sua expressão era atordoada. Ele se levantou e andou depressa até me alcançar. Presumi que fosse começar a se desculpar novamente e me precipitei, cortando. Não era necessário.

- Está tudo bem, Henri. Eu devia ter fechado a porta. Hoje estou um pouco distraída e também pensei que todos já tinham ido... não precisa se preocupar. Podemos até acrescentar àquela nossa lista de “momentos de vestiários que devem ser esquecidos”. Estamos nos aperfeiçoando em criá-los mesmo... – disse tudo muito rápido, mas ele me escutava com atenção e quando parei nos encarávamos e ele sorriu. Ali estava o brilho de seus olhos de volta. Tremi.
- Desculpe. – ele disse suave novamente, ainda sorrindo. – Se depender de mim, já está esquecido. – forcei um sorriso. Nossos olhos pareciam colados com feitiço permanente e por um segundo (eu tive quase certeza de tê-lo inventado entre meus devaneios) li entre aqueles riscos verdes uma expressão nova que fez o coração saltar. Mas antes que pudesse decifrá-la corretamente, ela foi embora quando ele piscou, antes de recomeçar a falar. – Parabéns pela captura. Foi uma vitória e tanto em cima da Othila, eu sabia que vocês iriam vencer... – parte de seu tom de voz deixou de ser descontraído e assumiu um profissional. Aquela mudança de assunto, timbre e expressão causou em mim um anticlímax insustentável. Era como se tivesse me jogado um balde de água bem gelada quando meu corpo estava começando a se acostumar com o calor.

Agora ele falava sobre os próximos jogos e treinos, mas pela primeira vez eu não prestava atenção em nada do que dizia. Travava um duelo comigo mesma e só ouvia o zumbido de várias vozes (todas minhas) falando ao mesmo tempo na cabeça. A guerra foi pesada. Um grupo de vozes (que deviam pertencer à minha personalidade desafiadora) dizia que estava agindo como uma covarde e que devia atacar imediatamente. O grupo oposto (esse eu tinha certeza: pertenciam à minha recente personalidade cautelosa e imprecisa) respondia na mesma altura pedindo que tivesse cuidado com minhas ações impensadas, pois certamente elas viriam carregadas de conseqüências. Enquanto eles se atacavam e se defendiam um do outro, observava apática os lábios dele se movimentarem sem parar, mas sua voz era muda.

- Você está me ouvindo?

Pela segunda vez naquele dia me senti saindo de um transe. Mas esse foi diferente. Além de me sentir caindo na realidade novamente, foi como se tivessem puxado um tufo de algodão de cada um dos meus ouvidos e me libertado do eco surdo dos meus pensamentos ainda em conflitos. Novamente ele me olhava com atenção e cuidado e novamente senti o corpo queimar com o toque de sua mão em meu ombro. Dessa vez, não respondi. Pelo menos não verbalmente. Antes que pudesse me dar conta do que exatamente estava fazendo, senti meus pés darem um passo a frente, parando quando nossos corpos estavam a pouquíssimos centímetros de distância. Senti sua mão vacilar um pouco no toque, mas eu estava decidida a não fugir e procurei nos seus olhos novamente a mesma expressão sugestiva que tinha visto (ou imaginado) um pouco mais cedo. E a encontrei. Ela estava bem ali, clara e óbvia. Ele agora também me olhava com firmeza e uma intensidade nada cuidadosa e sim, urgente.
Não demorei muito para decifrá-la como um desafio, afinal eu também sentia uma vontade urgente de agir. O grupo de vozes que estavam na defensiva, imediatamente recuaram para a periferia da minha consciência e eu fiz coro aos vencedores que pediam meu ataque. Obedeci e avancei. Agora sem tremores, indecisões, censuras, medos e incertezas, estiquei minhas duas mãos (que estavam prestes a pegar fogo) e pousei-as em seu rosto gelado, segurando-o com força e paralisando-o, embora não fosse necessário, pois sua expressão não se alterou e ele também não parecia disposto a se mexer. Trocamos mais um breve olhar antes que, muito agilmente, eu o puxasse para mim o beijando.
De imediato, ele pareceu alheio, mas pouco tempo depois, uma de suas mãos deslizou até minha cintura abraçando-a enquanto a outra pousava em meu pescoço e se embaraçava no meio do meu cabelo, puxando-me para ele também.
Para mim, pareceu ter durado muito pouco, pois eu parecia ter saído de órbita e perdido a noção de espaço e tempo. Nos imaginei flutuando no vácuo. Quando nos afastamos de leve, nossas testas ainda se tocando e a mão dele ainda enrolada no meu cabelo, não abri os olhos de imediato, decidindo que ouviria um pouco mais de minha respiração antes. Mas devo ter prolongado demais, pois uma nova injeção de covardia se espalhou rapidamente por meu corpo e senti suas mãos me soltarem e nossos corpos se distanciarem definitivamente, sem que eu protestasse para que não fizessem isso.
Ouvi um barulho abafado de passos sendo cravados na grama úmida do campo, se distanciando, e finalmente senti que era seguro voltar a enxergar, sentindo uma mescla de alívio e desespero quando vi Henri sumindo de costas.

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