segunda-feira, 16 de março de 2009

Ainda das lembranças de Miyako Kinoshita...

14 de março de 2000.

Durante todo o treino de quadribol da tarde, mantive minha cabeça baixa e os olhos, conseqüentemente, impossíveis de serem atraídos pelo ímã dos olhos de Henri. Ainda não tinha coragem de fitá-los e descobrir o que se passava neles, depois de tudo (mesmo com Gabriel, Ty, Griffon, Ricard e até mesmo Seth e Luna me dizendo insistentemente que agora isso seria inevitável, mais cedo ou mais tarde).
Ele analisou as táticas válidas e falhas do último jogo (e meu estômago deu uma volta completa quando ele elogiou – sempre com o tom de voz profissional – minha captura em cima do apanhador da Othila) propondo em seguida que tirássemos aquela hora para reavaliarmos algumas posições e jogadas esquecidas. Não ajudou. Enquanto caminhava ao estádio, antes do treino, minha cabeça traçara um plano perfeito de fuga: chegar acompanhada de Charles e Augustin, de cabeça baixa – montar na minha vassoura e voar para o mais alto possível durante o restante do tempo de treino – sair acompanhada de Charles e Augustin, de cabeça baixa. Mas eu era só uma, contra seis que pareceram bastante entusiasmados por uma aula “teórica” naquele dia, sem terem de voar contra o vento gelado e seco que cortava todos os cantos do castelo. Dando-me por vencida, sentei-me na arquibancada junto com os outros, porém o mais longe dele que consegui. Henri pareceu não se incomodar com minhas atitudes e nem desviou os olhos para pedir que me aproximasse mais, quando colocou a sua prancheta no colo fazendo alguns desenhos e representações de táticas. Não estava mesmo prestando atenção.
Os minutos se arrastaram e tentei organizar um plano B, que ficou tão simples quanto o A: sair correndo dali assim que ele nos dispensasse.
Quando faltavam cinco minutos, coloquei a vassoura com força embaixo do braço e comecei a batucar de leve os pés no degrau da arquibancada, impaciente... A qualquer momento a partir de agora... Concentrei em ouvir o que ele dizia para não perder.

- Se vocês se lembrarem de manter essa posição de defesa, acredito que podem impedir muitos arremessos, porque pelo que percebi dos times de Durmstrang (não muito os de Hogwarts, que parecem mais estruturados) até agora, eles são muito explosivos no ataque sem se preocuparem com o que está na frente. Por isso ficam tão desconcertados quando ficam na barreira de defesa e sofrem contra-ataque. – ele concluiu e todos concordaram com a cabeça. Consultei no relógio de novo: o treino já havia acabado. Soltei uma exclamação de impaciência que ele provavelmente percebeu, pois também consultou o relógio no seu pulso, sorrindo gentilmente em seguida. – Bom, nosso tempo acabou. Espero que essa conversa tenha ajudado vocês... na próxima semana tentamos colocar isso em prática. Estão dispensados.

Coloquei-me de pé em um salto e estava pronta para saltar os dois lances de degraus que me separavam do gramado do campo quando um punho se fechou com um pouco de força ao redor do meu braço me fazendo cair para trás sentada novamente. Olhei os dedos que me seguravam e minhas bochechas ficaram em chamas porque agora tive certeza de que os olhos verdes que eu tentara evitar nas duas últimas semanas estavam muito próximos de mim, me fitando atentamente.

- Se incomoda de me ajudar a guardar a caixa de bolas no depósito, Miyako? Quero dar uma palavrinha com você. – ele disse suavemente bem ali perto, mas eu ainda fitava seus dedos, bem seguros ao redor do meu braço e constatando que não teria como escapar me sentindo um pouco enjoada e apreensiva.

Concordei com a cabeça desanimada e ele me soltou. Ouvi um “click” ali perto e soube que Eugene, Edith, Simone e Jean já tinham voltado para a França pela chave de portal e, a julgar o silêncio ao redor, Charles e Augustin já estavam bem longe dali - provavelmente comentando animados as dicas de novas táticas, jogando pelo ralo o sucesso do meu “plano A”. Fitando um ponto fixo no horizonte, estendi a varinha para a caixa de bolas no chão e ela levitou uns passos no ar. Conduzi-a lentamente até a porta fechada no canto do campo. Estava empilhando-a cuidadosamente em cima do armário quando a porta se fechou atrás de mim. Demorando mais do que era necessário para baixar de vez a caixa, permaneci de costas e em silêncio, mas os pensamentos novamente a mil, tentando me concentrar.
Se eu fechasse os olhos ainda poderia sentir suas mãos me segurando com força enquanto nos beijávamos e aquela sensação de flutuar no vácuo que me fazia sorrir sempre que me lembrava dela. Em contrapartida, eu devia ter ficado maluca por ter tomado a iniciativa e beijado um professor. Todo esse tempo em que não nos vimos fez com que novamente as “vozes” na minha cabeça entrassem em conflitos cada vez mais sangrentos, me apoiando e me julgando, me incentivando e me criticando, continuamente. A conclusão que tinha chegado depois de muito esforço, é que não queria ver nos seus olhos as reações que bem provavelmente estariam estampadas ali para todos: censura, indignação, decepção... Ia ser demais ter que enfrentar isso quando tudo em mim gritava e estampava aos quatro ventos que, apesar de todas as conseqüências que aquele meu ato possuía, nem uma célula se arrependia do feito.

- Seria melhor se você olhasse para mim enquanto eu falo. – ele disse baixo bem mais perto de mim do que imaginei que estaria e me sobressaltei. Seu tom era calmo e paciente.

Uma angústia enorme tomou conta de mim quando ele segurou meus ombros com firmeza me fazendo virar de frente para ele, a cabeça ainda baixa. Uma de suas mãos apoiou meu queixo - que não se manifestou ao levantar-se em rendição. Olho no olho, novamente. Dois segundos foram suficientes para que todo o meu medo se esvaísse do corpo como se tivesse sido sugado por um cano invisível. Os riscos verdes... sorriam. Aquilo me deu um surto de coragem. Um motivo para desafiar eles a se transformarem em qualquer outra expressão sem que eu fosse declarar guerra. Falei aos atropelos.

- Se vai falar que está tudo bem, eu estava nervosa e agi sem pensar e que podemos esquecer esse assunto também, não se atreva. – eu disse um pouco rude, mas eles continuavam rindo. Relaxei um pouco mais. – Eu estava nervosa e cansada, sim, mas ter te beijado não tem nada a ver com isso... Quer dizer... Só se o fato de você me deixar um tanto apreensiva e aérea conte para o quesito “nervosa”. Vai-se começar a me censurar e me ignorar de agora em diante, precisa saber que não estou arrependida do que fiz e não vou pedir desculpas. Te beijei sim e se quer saber o porquê de ter feito isso, eu digo: porque eu gosto de você. Mais do que já gostei de qualquer outra pessoa, e pode se sentir privilegiado com isso se quer saber. Não escolhi isso, mas não é uma coisa que aprendi a controlar e por isso estou agindo que nem uma idiota desde a noite do Baile de Inverno, que não éramos “aluna” e “professor” e que eu pude realmente começar com minhas cenas de amor platônico.

So she said what's the problem baby?
What's the problem? I don't know. Well maybe I'm in love
Think about it every time
I think about it
Can't stop thinking 'bout it

How much longer will it take to cure this
Just to cure it cause I can't ignore it if it's love (love)
Makes me wanna turn around and face me but I don't know nothing 'bout love

Quando terminei, me sentia tão leve que poderia sair dali naquele instante e... cantar. Mas quando o êxtase passou e seus olhos continuavam se divertindo com os meus, fiquei confusa. No que, afinal, ele estava pensando? Aquilo não era divertido! Já estava começando a me irritar (de verdade) quando ele me interrompeu, tranqüilo.

- Você me surpreendeu, de todas as maneiras. Eu não esperava que fosse me beijar, não esperava que eu fosse corresponder ao beijo realmente querendo isso, - ele enfatizou e minhas pernas quase cederam - não esperava que fosse fugir de mim depois, como se estivéssemos cometendo um crime, e nem que pretendia enterrar aquele momento com você sem nem me perguntar se também me interessava essa atitude. Mas sabe o que mais me surpreendeu em você? – como eu não conseguiria responder, nem por mímicas, esperei completamente em silêncio e atônita. Ele riu. – O fato de ter despertado em mim uma sensação tão nova e louca que agora não sei como lidar, mas tenho uma idéia e quero compartilhar com você... – acho que meus olhos estavam muito arregalados quando escutei isso, porque ele riu abertamente, pela primeira vez zombando da minha cara. – Certo, acho que não estou sendo bastante óbvio então vou direto ao ponto: eu acho que também gosto de você, Miyako. Por mais insano, imaturo e impossível que isso possa parecer.

Come on, come on
Turn a little faster
Come on, come on
The world will follow after
Come on, come on
'cause everybody's after love

O chão caiu e eu estava novamente no vácuo. Percebi um pouco tarde o que estava acontecendo: eu estava sonhando. Isso. A qualquer momento iria abrir os olhos e não estaríamos mais naquele depósito fechado e escuro, mas eu estaria deitada e um tanto decepcionada na minha cama, segura na Avalon e idealizando mais uma cena do meu romance de livro. Pisquei os olhos mais de uma vez com força e sacudi a cabeça, mas mesmo depois de todas as tentativas, o depósito estava lá. Ele estava lá. E ele me encarava sério, penetrante, perturbadoramente verdadeiro.

- Enquanto você assimila o que eu disse, posso compartilhar a idéia? – ele perguntou, mas respondeu em seguida pois sabia que eu não reagiria naquele instante. - Se eu gosto de você e se você gosta de mim... se somos maiores de idade, livres e conscientes dos nossos atos (e de todos os problemas que podemos enfrentar por causa deles) e, principalmente, se ambos vemos que isso pode dar certo, apesar de todas as diferenças e situações... não vejo porque temos que nos evitar. Não consigo listar um único motivo convincente que me faça acreditar que isso é uma loucura total, sem razão ou propósito alguns. Ou seja, não consigo pensar em porque tenho que ficar longe de você e você tem que ficar longe de mim. MAS... – ele falava tudo isso parecendo monótono e eu captava cada uma de suas palavras com uma atenção exagerada. – as complicações, claro. Eu, na prática, não sou seu professor. Sou apenas o “técnico” do time de quadribol do qual você pertence, como sou de todas as outras três casas e dos outros tantos alunos que jogam nelas. Porém, teoricamente, você e eu sabemos que não podemos simplesmente sair desse depósito agora mesmo de mãos dadas mostrando ao mundo que “acidentalmente nos apaixonamos e não ligamos para o que os outros vão pensar ou dizer” porque isso seria estupidez e absurdo. Então eu pensei e a minha idéia é: ficamos juntos sim (porque nos gostamos e não devemos nada a ninguém mesmo), mas pelo menos até você se formar – daqui quatro meses – escondidos. E então, depois que tiver seu diploma na mão, não me importo de cantar aos quatro ventos que me apaixonei por uma ex-aluna. O que acha?

Well baby I surrender to the strawberry ice cream
Never ever end of all this love
Well I didn't mean to do it but there's no escaping your love

These lines of lightning mean we're never alone,
Never alone, no, no

Ele agora sorria presunçoso, como se estivesse orgulhoso de si mesmo de ter armado um plano tão brilhante para toda a situação. Eu tinha entendido tudo (e já tinha aceitado e concordado com cada tópico, claro), mas ainda não acreditava totalmente de que não estava sonhando. Era surreal demais. Como continuava imóvel e chocada, ele vacilou.

- Está tudo bem se você não concordar. Vou entender se você percebeu que o que sente por mim é realmente amor platônico ou que não quer se envolver com alguém alguns anos mais velho... ou ainda que não queira pensar em firmar compromissos tão nova, ainda mais depois de se formar e for seguir sua vida... ou quem sabe, não quer arriscar namorar escondido? Sério, fala alguma coisa. Preciso saber...
- Eu... – comecei com a voz fraca e esganiçada e parei. Não ia conseguir falar, mas tinha que responder que sim.

Tinha que deixar estampado pra ele que estava disposta a enfrentar coisas bem piores do que a idade dele ou o namoro escondido, ou o compromisso antes de me formar. Mas não ia conseguir falar. Sem forçar a garganta seca mais uma vez, inutilmente, eu soube o que fazer e não demorei mais nem um segundo antes de me jogar novamente em seus braços e o beijá-lo com todas as representações que aquilo estava me custando (e ainda me custariam, eu tinha certeza).

Come on, come on
Jump a little higher

Come on, come on

If you feel a little lighter

Come on, come on

We were once upon a time in love


We're accidentally in love

Accidentally in Love


N.A.: Accidentally in Love – Counting Crows
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