segunda-feira, 16 de março de 2009

Ainda das lembranças de Miyako Kinoshita...

14 de março de 2000.

Durante todo o treino de quadribol da tarde, mantive minha cabeça baixa e os olhos, conseqüentemente, impossíveis de serem atraídos pelo ímã dos olhos de Henri. Ainda não tinha coragem de fitá-los e descobrir o que se passava neles, depois de tudo (mesmo com Gabriel, Ty, Griffon, Ricard e até mesmo Seth e Luna me dizendo insistentemente que agora isso seria inevitável, mais cedo ou mais tarde).
Ele analisou as táticas válidas e falhas do último jogo (e meu estômago deu uma volta completa quando ele elogiou – sempre com o tom de voz profissional – minha captura em cima do apanhador da Othila) propondo em seguida que tirássemos aquela hora para reavaliarmos algumas posições e jogadas esquecidas. Não ajudou. Enquanto caminhava ao estádio, antes do treino, minha cabeça traçara um plano perfeito de fuga: chegar acompanhada de Charles e Augustin, de cabeça baixa – montar na minha vassoura e voar para o mais alto possível durante o restante do tempo de treino – sair acompanhada de Charles e Augustin, de cabeça baixa. Mas eu era só uma, contra seis que pareceram bastante entusiasmados por uma aula “teórica” naquele dia, sem terem de voar contra o vento gelado e seco que cortava todos os cantos do castelo. Dando-me por vencida, sentei-me na arquibancada junto com os outros, porém o mais longe dele que consegui. Henri pareceu não se incomodar com minhas atitudes e nem desviou os olhos para pedir que me aproximasse mais, quando colocou a sua prancheta no colo fazendo alguns desenhos e representações de táticas. Não estava mesmo prestando atenção.
Os minutos se arrastaram e tentei organizar um plano B, que ficou tão simples quanto o A: sair correndo dali assim que ele nos dispensasse.
Quando faltavam cinco minutos, coloquei a vassoura com força embaixo do braço e comecei a batucar de leve os pés no degrau da arquibancada, impaciente... A qualquer momento a partir de agora... Concentrei em ouvir o que ele dizia para não perder.

- Se vocês se lembrarem de manter essa posição de defesa, acredito que podem impedir muitos arremessos, porque pelo que percebi dos times de Durmstrang (não muito os de Hogwarts, que parecem mais estruturados) até agora, eles são muito explosivos no ataque sem se preocuparem com o que está na frente. Por isso ficam tão desconcertados quando ficam na barreira de defesa e sofrem contra-ataque. – ele concluiu e todos concordaram com a cabeça. Consultei no relógio de novo: o treino já havia acabado. Soltei uma exclamação de impaciência que ele provavelmente percebeu, pois também consultou o relógio no seu pulso, sorrindo gentilmente em seguida. – Bom, nosso tempo acabou. Espero que essa conversa tenha ajudado vocês... na próxima semana tentamos colocar isso em prática. Estão dispensados.

Coloquei-me de pé em um salto e estava pronta para saltar os dois lances de degraus que me separavam do gramado do campo quando um punho se fechou com um pouco de força ao redor do meu braço me fazendo cair para trás sentada novamente. Olhei os dedos que me seguravam e minhas bochechas ficaram em chamas porque agora tive certeza de que os olhos verdes que eu tentara evitar nas duas últimas semanas estavam muito próximos de mim, me fitando atentamente.

- Se incomoda de me ajudar a guardar a caixa de bolas no depósito, Miyako? Quero dar uma palavrinha com você. – ele disse suavemente bem ali perto, mas eu ainda fitava seus dedos, bem seguros ao redor do meu braço e constatando que não teria como escapar me sentindo um pouco enjoada e apreensiva.

Concordei com a cabeça desanimada e ele me soltou. Ouvi um “click” ali perto e soube que Eugene, Edith, Simone e Jean já tinham voltado para a França pela chave de portal e, a julgar o silêncio ao redor, Charles e Augustin já estavam bem longe dali - provavelmente comentando animados as dicas de novas táticas, jogando pelo ralo o sucesso do meu “plano A”. Fitando um ponto fixo no horizonte, estendi a varinha para a caixa de bolas no chão e ela levitou uns passos no ar. Conduzi-a lentamente até a porta fechada no canto do campo. Estava empilhando-a cuidadosamente em cima do armário quando a porta se fechou atrás de mim. Demorando mais do que era necessário para baixar de vez a caixa, permaneci de costas e em silêncio, mas os pensamentos novamente a mil, tentando me concentrar.
Se eu fechasse os olhos ainda poderia sentir suas mãos me segurando com força enquanto nos beijávamos e aquela sensação de flutuar no vácuo que me fazia sorrir sempre que me lembrava dela. Em contrapartida, eu devia ter ficado maluca por ter tomado a iniciativa e beijado um professor. Todo esse tempo em que não nos vimos fez com que novamente as “vozes” na minha cabeça entrassem em conflitos cada vez mais sangrentos, me apoiando e me julgando, me incentivando e me criticando, continuamente. A conclusão que tinha chegado depois de muito esforço, é que não queria ver nos seus olhos as reações que bem provavelmente estariam estampadas ali para todos: censura, indignação, decepção... Ia ser demais ter que enfrentar isso quando tudo em mim gritava e estampava aos quatro ventos que, apesar de todas as conseqüências que aquele meu ato possuía, nem uma célula se arrependia do feito.

- Seria melhor se você olhasse para mim enquanto eu falo. – ele disse baixo bem mais perto de mim do que imaginei que estaria e me sobressaltei. Seu tom era calmo e paciente.

Uma angústia enorme tomou conta de mim quando ele segurou meus ombros com firmeza me fazendo virar de frente para ele, a cabeça ainda baixa. Uma de suas mãos apoiou meu queixo - que não se manifestou ao levantar-se em rendição. Olho no olho, novamente. Dois segundos foram suficientes para que todo o meu medo se esvaísse do corpo como se tivesse sido sugado por um cano invisível. Os riscos verdes... sorriam. Aquilo me deu um surto de coragem. Um motivo para desafiar eles a se transformarem em qualquer outra expressão sem que eu fosse declarar guerra. Falei aos atropelos.

- Se vai falar que está tudo bem, eu estava nervosa e agi sem pensar e que podemos esquecer esse assunto também, não se atreva. – eu disse um pouco rude, mas eles continuavam rindo. Relaxei um pouco mais. – Eu estava nervosa e cansada, sim, mas ter te beijado não tem nada a ver com isso... Quer dizer... Só se o fato de você me deixar um tanto apreensiva e aérea conte para o quesito “nervosa”. Vai-se começar a me censurar e me ignorar de agora em diante, precisa saber que não estou arrependida do que fiz e não vou pedir desculpas. Te beijei sim e se quer saber o porquê de ter feito isso, eu digo: porque eu gosto de você. Mais do que já gostei de qualquer outra pessoa, e pode se sentir privilegiado com isso se quer saber. Não escolhi isso, mas não é uma coisa que aprendi a controlar e por isso estou agindo que nem uma idiota desde a noite do Baile de Inverno, que não éramos “aluna” e “professor” e que eu pude realmente começar com minhas cenas de amor platônico.

So she said what's the problem baby?
What's the problem? I don't know. Well maybe I'm in love
Think about it every time
I think about it
Can't stop thinking 'bout it

How much longer will it take to cure this
Just to cure it cause I can't ignore it if it's love (love)
Makes me wanna turn around and face me but I don't know nothing 'bout love

Quando terminei, me sentia tão leve que poderia sair dali naquele instante e... cantar. Mas quando o êxtase passou e seus olhos continuavam se divertindo com os meus, fiquei confusa. No que, afinal, ele estava pensando? Aquilo não era divertido! Já estava começando a me irritar (de verdade) quando ele me interrompeu, tranqüilo.

- Você me surpreendeu, de todas as maneiras. Eu não esperava que fosse me beijar, não esperava que eu fosse corresponder ao beijo realmente querendo isso, - ele enfatizou e minhas pernas quase cederam - não esperava que fosse fugir de mim depois, como se estivéssemos cometendo um crime, e nem que pretendia enterrar aquele momento com você sem nem me perguntar se também me interessava essa atitude. Mas sabe o que mais me surpreendeu em você? – como eu não conseguiria responder, nem por mímicas, esperei completamente em silêncio e atônita. Ele riu. – O fato de ter despertado em mim uma sensação tão nova e louca que agora não sei como lidar, mas tenho uma idéia e quero compartilhar com você... – acho que meus olhos estavam muito arregalados quando escutei isso, porque ele riu abertamente, pela primeira vez zombando da minha cara. – Certo, acho que não estou sendo bastante óbvio então vou direto ao ponto: eu acho que também gosto de você, Miyako. Por mais insano, imaturo e impossível que isso possa parecer.

Come on, come on
Turn a little faster
Come on, come on
The world will follow after
Come on, come on
'cause everybody's after love

O chão caiu e eu estava novamente no vácuo. Percebi um pouco tarde o que estava acontecendo: eu estava sonhando. Isso. A qualquer momento iria abrir os olhos e não estaríamos mais naquele depósito fechado e escuro, mas eu estaria deitada e um tanto decepcionada na minha cama, segura na Avalon e idealizando mais uma cena do meu romance de livro. Pisquei os olhos mais de uma vez com força e sacudi a cabeça, mas mesmo depois de todas as tentativas, o depósito estava lá. Ele estava lá. E ele me encarava sério, penetrante, perturbadoramente verdadeiro.

- Enquanto você assimila o que eu disse, posso compartilhar a idéia? – ele perguntou, mas respondeu em seguida pois sabia que eu não reagiria naquele instante. - Se eu gosto de você e se você gosta de mim... se somos maiores de idade, livres e conscientes dos nossos atos (e de todos os problemas que podemos enfrentar por causa deles) e, principalmente, se ambos vemos que isso pode dar certo, apesar de todas as diferenças e situações... não vejo porque temos que nos evitar. Não consigo listar um único motivo convincente que me faça acreditar que isso é uma loucura total, sem razão ou propósito alguns. Ou seja, não consigo pensar em porque tenho que ficar longe de você e você tem que ficar longe de mim. MAS... – ele falava tudo isso parecendo monótono e eu captava cada uma de suas palavras com uma atenção exagerada. – as complicações, claro. Eu, na prática, não sou seu professor. Sou apenas o “técnico” do time de quadribol do qual você pertence, como sou de todas as outras três casas e dos outros tantos alunos que jogam nelas. Porém, teoricamente, você e eu sabemos que não podemos simplesmente sair desse depósito agora mesmo de mãos dadas mostrando ao mundo que “acidentalmente nos apaixonamos e não ligamos para o que os outros vão pensar ou dizer” porque isso seria estupidez e absurdo. Então eu pensei e a minha idéia é: ficamos juntos sim (porque nos gostamos e não devemos nada a ninguém mesmo), mas pelo menos até você se formar – daqui quatro meses – escondidos. E então, depois que tiver seu diploma na mão, não me importo de cantar aos quatro ventos que me apaixonei por uma ex-aluna. O que acha?

Well baby I surrender to the strawberry ice cream
Never ever end of all this love
Well I didn't mean to do it but there's no escaping your love

These lines of lightning mean we're never alone,
Never alone, no, no

Ele agora sorria presunçoso, como se estivesse orgulhoso de si mesmo de ter armado um plano tão brilhante para toda a situação. Eu tinha entendido tudo (e já tinha aceitado e concordado com cada tópico, claro), mas ainda não acreditava totalmente de que não estava sonhando. Era surreal demais. Como continuava imóvel e chocada, ele vacilou.

- Está tudo bem se você não concordar. Vou entender se você percebeu que o que sente por mim é realmente amor platônico ou que não quer se envolver com alguém alguns anos mais velho... ou ainda que não queira pensar em firmar compromissos tão nova, ainda mais depois de se formar e for seguir sua vida... ou quem sabe, não quer arriscar namorar escondido? Sério, fala alguma coisa. Preciso saber...
- Eu... – comecei com a voz fraca e esganiçada e parei. Não ia conseguir falar, mas tinha que responder que sim.

Tinha que deixar estampado pra ele que estava disposta a enfrentar coisas bem piores do que a idade dele ou o namoro escondido, ou o compromisso antes de me formar. Mas não ia conseguir falar. Sem forçar a garganta seca mais uma vez, inutilmente, eu soube o que fazer e não demorei mais nem um segundo antes de me jogar novamente em seus braços e o beijá-lo com todas as representações que aquilo estava me custando (e ainda me custariam, eu tinha certeza).

Come on, come on
Jump a little higher

Come on, come on

If you feel a little lighter

Come on, come on

We were once upon a time in love


We're accidentally in love

Accidentally in Love


N.A.: Accidentally in Love – Counting Crows

Da penseira de Miyako Kinoshita

28 de fevereiro de 2000.

As arquibancadas do estádio de quadribol de Durmstrang já estavam lotadas de alunos das três escolas, que aprontavam uma verdadeira algazarra enquanto gritavam e cantavam juntos, fazendo o chão do vestiário levemente tremer. Eugene se movimentou inquieto ao meu lado no banco e ri. Em poucos minutos entraríamos em campo para jogarmos contra a Othila (um dos times mais bem cotados da casa) e apesar de já estarmos classificados para a segunda rodada do campeonato (uma vez que a Lufa-lufa de Hogwarts havia perdido os dois jogos, sendo a eliminada de nossa chave), vencer essa partida significaria assumir o primeiro lugar de nosso grupo. Não era fundamental, mas nos daria algum benefício para as próximas partidas.
Terminava de arrumar minhas luvas nas mãos enquanto fazia esforço para escutar as últimas instruções de Charles para o time, mas estava sendo praticamente impossível devido ao barulho ensurdecedor. Quando ele se deu por vencido, limitou-se a se aquecer em um canto e ficamos novamente em silêncio. A voz levemente rouca de Viggo Volkov sobressaltou-se nos auto-falantes por todo o estádio fazendo a arquibancada se calar para ouvir as saudações.

“Marcando a última partida desta primeira rodada do Torneio Tribruxo ‘Entre-Casas’ de Quadribol, o duelo hoje está pontuado entre a Othila de Durmstrang (a algazarra recomeçou frenética) e a Nox de Beauxbatons, ambas as equipes já classificadas para a próxima etapa e lutando apenas para o primeiro lugar de sua chave. Lembrando a todos que as quartas de final começam a partir do dia...”

Charles fez sinal para que nos aproximássemos e formássemos um círculo, unindo uma das mãos e soltando o grito de guerra. Depois começamos a nos organizar em fila à espera do anúncio de nossos nomes. Me posicionei atrás de todos eles, ansiosa. Era impossível não sentir cócegas no estômago antes dos jogos de quadribol, por mais amistosos que fossem. Estava concentrada escutando os nomes dos jogadores do time adversário que já entravam em campo, quando Henri apareceu, animado.
Meu coração disparou mais dois compassos por batida e senti o sangue correr fervendo por todo o corpo quando ele andou pela fila, parando-se ao meu lado e sorrindo, uma das mãos em meu ombro direito.

- Então... preparados para vencerem? – ele perguntou empolgado e consegui identificar um leve tom de sarcasmo na voz, pois ele ria da expressão pálida de Eugene e da careta de Charles. Simone foi a única que pareceu confiante o suficiente para sacudir a cabeça em afirmação (eu também estava otimista para o jogo, mas sua mão quente em cima do meu ombro não me deixava agir voluntariamente). – Animem-se! Vocês estão jogando muito bem! Vão vencer, podem apostar. Eu já fiz isso com o Viggo e não estou disposto a perder dois galeões, entenderam? Confio em vocês. Boa sorte. – ele deu uma piscadinha e todo o time riu se revigorando.

Do lado de fora, Volkov preparou a torcida para nossa entrada e todos montaram as vassouras. Todos, menos eu, que parecia em choque. Percebendo que não me movimentava, Henri puxou meu braço com delicadeza alguns passos para trás me afastando do restante do time. O nome de Charles foi anunciado e de relance o vi dando um impulso com a vassoura e ganhando o ar sendo o primeiro a desaparecer do vestiário.

- Miyako? – ele perguntou cuidadoso e ao som de sua voz tão próxima do meu rosto levantei os olhos para encará-lo. Seus olhos verdes não brilhavam, mas me analisavam curiosos. – Você está bem? – Jean foi o segundo a sumir.
- Estou. – respondi com a voz um tanto aguda de susto, voltando à consciência quando o nome de Augustin explodiu e ele seguiu Jean como um raio. Henri sorriu parecendo aliviado. – Me distraí. – disse sincera e ele apertou um pouco mais meus braços, ainda me olhando.
- Você vai se sair bem.

Nos encaramos por vários segundos, intensamente. Ele me transmitiu uma enorme sensação de paz e confiança (que não experimentava há muito tempo) e não pude deixar de sorrir abertamente por isso. Ele retribuiu. Quando desviou seus olhos, pareceram alarmados e também olhei o vestiário. Eugene e Simone já haviam sumido e só restava Edith que desapareceu antes que pudesse me preparar.

- Depressa! Já vão te anunciar! – ele disse agitado me dando um leve empurrão para frente.

Mal tinha montado a vassoura quando ouvi meu nome do lado de fora. Não olhando mais para trás, dei impulso no chão e a vassoura subiu rápida, vários metros, ganhando o campo. Um vento gelado cortou meu rosto, me tirando totalmente do transe e me concentrando nos aplausos da torcida enquanto dava uma volta completa esperando o início da partida.

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O pomo de ouro estava seguro na palma da minha mão quando o apito de Madame Hooch atingiu meus ouvidos, encerrando a partida. Estendi o braço sorrindo abertamente para o restante do time, que também subia as vassouras na minha direção para me abraçarem. Havíamos vencido o jogo com larga vantagem em cima da Othila e a parte vestida com uniforme azul da arquibancada saltava alucinada. Madame Máxime liberou para Simone, Eugene, Jean e Edith mais algumas horas até que tivessem de voltar a Beauxbatons e Augustin programava animado uma ida até o bar do vilarejo que educadamente dispensei.
Apesar de estar satisfeita com nosso resultado na primeira etapa, não me senti suficientemente empolgada para acompanhá-los e estender a comemoração. Primeiro porque sabia que ainda teríamos jogos muito mais difíceis pela frente, mas principalmente por me sentir exausta. Os últimos meses caíam em cima de mim como um grande e pesado saco de areia nas costas e agora que eu finalmente começava a espalhar um pouco de seu conteúdo pelo chão, sentia meu corpo todo amolecido. Meus planos mais ambiciosos para aquele fim de semana se baseavam em me recolher na Avalon, abraçada ao travesseiro e torcendo para que, com sorte, não acordasse assustada por pesadelos envolvendo um grupo de vampiros me cercando, mascarados marcando minha pele com fogo ou sendo presa por desrespeitar as novas leis do Ministério (o que agora era praticamente comum acontecer), e eu pudesse ter algumas horas de descanso absoluto.

Me despedi do restante do time e da maior parte dos meus amigos (que também já seguia para o vilarejo) e me arrastei até o vestiário. O estádio agora em silêncio. Despi o uniforme do time preguiçosamente e ainda não tinha vestido a outra roupa quando ouvi alguém se aproximar assoviando. Assustada, puxei meu casaco do armário me enrolando da melhor maneira que pude nele, esperando. A única pessoa que desejei mentalmente não entrar ali foi justamente a que parou estupefata na porta alguns segundos depois me avaliando de cima a baixo, confusa.
Henri se demorou vários segundos na mesma posição e meu rosto agora ardia, mas também não mexi nem um músculo e o olhava constrangida. Quando ele pareceu perceber o que tinha acontecido, sacudiu a cabeça.

- Desculpe Miyako, eu não sabia que você ainda estava aqui e... pensei que tivessem ido todos para o vilarejo... – ele se explicava depressa, ainda transtornado. Continuei paralisada. – Vou sair. Desculpe.

Virou as costas rapidamente e desapareceu. Esperei vários segundos (ou minutos), estática, escutando do lado de fora, mas novamente não havia nenhum som. Ainda enrolada no casaco, fui até a porta, fechando-a e encostando a testa na superfície metálica e gelada dela, tonta. Demorei mais um bom tempo até finalmente correr até o armário e me vestir.
Agora, mais do que nunca, queria sumir no conforto silencioso e solitário da minha cama, mas novamente meu plano de fugir foi frustrado, pois assim que sai do vestiário vi Henri sentado na primeira fileira da arquibancada me esperando. Sua expressão era atordoada. Ele se levantou e andou depressa até me alcançar. Presumi que fosse começar a se desculpar novamente e me precipitei, cortando. Não era necessário.

- Está tudo bem, Henri. Eu devia ter fechado a porta. Hoje estou um pouco distraída e também pensei que todos já tinham ido... não precisa se preocupar. Podemos até acrescentar àquela nossa lista de “momentos de vestiários que devem ser esquecidos”. Estamos nos aperfeiçoando em criá-los mesmo... – disse tudo muito rápido, mas ele me escutava com atenção e quando parei nos encarávamos e ele sorriu. Ali estava o brilho de seus olhos de volta. Tremi.
- Desculpe. – ele disse suave novamente, ainda sorrindo. – Se depender de mim, já está esquecido. – forcei um sorriso. Nossos olhos pareciam colados com feitiço permanente e por um segundo (eu tive quase certeza de tê-lo inventado entre meus devaneios) li entre aqueles riscos verdes uma expressão nova que fez o coração saltar. Mas antes que pudesse decifrá-la corretamente, ela foi embora quando ele piscou, antes de recomeçar a falar. – Parabéns pela captura. Foi uma vitória e tanto em cima da Othila, eu sabia que vocês iriam vencer... – parte de seu tom de voz deixou de ser descontraído e assumiu um profissional. Aquela mudança de assunto, timbre e expressão causou em mim um anticlímax insustentável. Era como se tivesse me jogado um balde de água bem gelada quando meu corpo estava começando a se acostumar com o calor.

Agora ele falava sobre os próximos jogos e treinos, mas pela primeira vez eu não prestava atenção em nada do que dizia. Travava um duelo comigo mesma e só ouvia o zumbido de várias vozes (todas minhas) falando ao mesmo tempo na cabeça. A guerra foi pesada. Um grupo de vozes (que deviam pertencer à minha personalidade desafiadora) dizia que estava agindo como uma covarde e que devia atacar imediatamente. O grupo oposto (esse eu tinha certeza: pertenciam à minha recente personalidade cautelosa e imprecisa) respondia na mesma altura pedindo que tivesse cuidado com minhas ações impensadas, pois certamente elas viriam carregadas de conseqüências. Enquanto eles se atacavam e se defendiam um do outro, observava apática os lábios dele se movimentarem sem parar, mas sua voz era muda.

- Você está me ouvindo?

Pela segunda vez naquele dia me senti saindo de um transe. Mas esse foi diferente. Além de me sentir caindo na realidade novamente, foi como se tivessem puxado um tufo de algodão de cada um dos meus ouvidos e me libertado do eco surdo dos meus pensamentos ainda em conflitos. Novamente ele me olhava com atenção e cuidado e novamente senti o corpo queimar com o toque de sua mão em meu ombro. Dessa vez, não respondi. Pelo menos não verbalmente. Antes que pudesse me dar conta do que exatamente estava fazendo, senti meus pés darem um passo a frente, parando quando nossos corpos estavam a pouquíssimos centímetros de distância. Senti sua mão vacilar um pouco no toque, mas eu estava decidida a não fugir e procurei nos seus olhos novamente a mesma expressão sugestiva que tinha visto (ou imaginado) um pouco mais cedo. E a encontrei. Ela estava bem ali, clara e óbvia. Ele agora também me olhava com firmeza e uma intensidade nada cuidadosa e sim, urgente.
Não demorei muito para decifrá-la como um desafio, afinal eu também sentia uma vontade urgente de agir. O grupo de vozes que estavam na defensiva, imediatamente recuaram para a periferia da minha consciência e eu fiz coro aos vencedores que pediam meu ataque. Obedeci e avancei. Agora sem tremores, indecisões, censuras, medos e incertezas, estiquei minhas duas mãos (que estavam prestes a pegar fogo) e pousei-as em seu rosto gelado, segurando-o com força e paralisando-o, embora não fosse necessário, pois sua expressão não se alterou e ele também não parecia disposto a se mexer. Trocamos mais um breve olhar antes que, muito agilmente, eu o puxasse para mim o beijando.
De imediato, ele pareceu alheio, mas pouco tempo depois, uma de suas mãos deslizou até minha cintura abraçando-a enquanto a outra pousava em meu pescoço e se embaraçava no meio do meu cabelo, puxando-me para ele também.
Para mim, pareceu ter durado muito pouco, pois eu parecia ter saído de órbita e perdido a noção de espaço e tempo. Nos imaginei flutuando no vácuo. Quando nos afastamos de leve, nossas testas ainda se tocando e a mão dele ainda enrolada no meu cabelo, não abri os olhos de imediato, decidindo que ouviria um pouco mais de minha respiração antes. Mas devo ter prolongado demais, pois uma nova injeção de covardia se espalhou rapidamente por meu corpo e senti suas mãos me soltarem e nossos corpos se distanciarem definitivamente, sem que eu protestasse para que não fizessem isso.
Ouvi um barulho abafado de passos sendo cravados na grama úmida do campo, se distanciando, e finalmente senti que era seguro voltar a enxergar, sentindo uma mescla de alívio e desespero quando vi Henri sumindo de costas.

domingo, 8 de março de 2009

- Trouxe tudo, calouro? – Chris perguntou quando Filipe fechou a porta do quarto, ofegante.
- Sim, está tudo aqui – ele estendeu uma sacola e Chris tomou de sua mão, conferindo o conteúdo.
- Por que está esbaforido, calouro? – Ivan olhou para ele com um sorriso sarcástico
- Aurores. Volta. Longe. – Filipe respondeu apoiando as mãos no joelho e de cabeça baixa, tossindo.
- Ok, respira, vai beber uma água – Micah bateu nas costas dele e Wes o levou pra fora do quarto.
- Está tudo pronto então? – Ty perguntou olhando para Ivan.
- Não quero apressar ninguém, mas os aurores vão fazer a troca de turno agora e temos só 1 minuto para passar, até que o novo se posicione – Victor falou olhando pelo canto da janela
- Calouro Ricard, vá buscar o resto dos calouros na cozinha – Nicolas calibrou a arma de brinquedo que segurava e a jogou no ombro – Estamos prontos. Hora do ataque.

Carregamos as armas também, cada um pegou um capuz preto de dentro do saco que Filipe trouxe e cobrimos o rosto, saindo do quarto escuro. Sabíamos que os garotos da Chronos estavam nos esperando, mas tínhamos tudo planejado.

*****


Estávamos deitados na grama com as armas na mão, atentos às orientações passadas por Ivan só por meio de sinais. As luzes da república já estavam apagadas e sabíamos que isso não significava que estavam dormindo. Por certo quando entrássemos íamos topar com alguns garotos defendendo o forte. Ele fez sinal para que os calouros mais novos fossem na frente e esperamos nossa vez. Fiquei observando os garotos de 11 anos rastejando pela grama e encostando-se à parede do lado de fora, quando Filipe bateu na porta e se escondeu de novo.

Foi tudo rápido demais. Vimos a porta abrir e Arthur apareceu com trajes camuflados. Fiquei de pé atrás da moita onde me escondia e acertei um tiro de tinta bem no meio da cara dele. Ele caiu pra trás e os garotos menores saíram do chão, entrando correndo na casa e atirando pra todos os lados. Mas foi um massacre. Os garotos da Chronos saíram dos esconderijos e em menos de 5 minutos derrubaram nossos calouros. Diante da falha inicial, foi a nossa vez de invadir a casa. Ivan levantou já correndo na direção da porta e o seguimos, entrando pelas janelas e onde mais tivesse espaço.

A sala da república se transformou em uma pintura abstrata em questão de segundos. Ricard transportou os calouros da Spartacus para fora da casa em segurança e partimos pra cima deles sem dó nem piedade. O objetivo era levar o quadro do Deus Chronos como refém e Victor e eu ficamos encarregados dessa tarefa, enquanto os outros nos davam cobertura. Localizamos o alvo no centro da parede principal, em destaque, e protegido por alguns garotos. Mas eram todos calouros e não tivemos problema em derruba-los. Victor guardou o quadro em uma sacola e corremos de volta para a porta, as bolas de tinta batendo nas costas e machucando, mas não podíamos parar.

- Todo mundo pra fora! – ouvi Ivan gritar enquanto atirava em Reno – Recuar, recuar!
- Obrigado pela recepção, pessoal – Griffon falou debochado, acertando um ultimo tiro em Reno antes de sair correndo porta afora.

Os garotos ainda correram até a porta disparando tiros de tinta, mas já estávamos longe e se aproximando da nossa república, e eles não sabiam se era seguro nos seguir, então ficaram para trás. Hoje a vitória foi nossa.

*****


Depois do bem sucedido ataque a Chronos, saímos para as aulas do dia seguinte animados. O clima de “somos melhores que vocês” era nítido e não sentíamos nem um pouco de vergonha em nos acharmos superiores, afinal, aquela era toda a graça da guerra das republicas: se achar melhor que o outro. E apesar de terem perdido a batalha da noite anterior, sobrevivemos a todo o dia de aula sem incidentes com algum aluno da Chronos. Mas a trégua não durou até o anoitecer. E ter uma aula do clube dos duelos justamente naquele dia foi decisivo para o barril de pólvora explodir.

- Não quero feitiços surpresas hoje, vamos treinar apenas a defesa – o professor Marko passava entre as duplas formadas dando instruções – Um ataca apenas com a azaração do impedimento e o outro defende. Lancem a azaração sem intervalos, vocês precisam estar preparados para ataques múltiplos.
- Pronto, lobão? – Ty perguntou apontando a varinha pra mim – Vou mandar chumbo pesado.
- Manda ver! – respondi com a varinha a postos.

Esperamos o sinal do professor e quando ele autorizou, Ty começou a lançar o Impedimenta em cima de mim, sem parar. Estava conseguindo rebater todas elas sem problemas e já começávamos a rir no meio do duelo, quando senti um impacto nas minhas costas e fui jogado para fora do tatame, derrubando Griff no caminho. Levantei ainda atordoado pela pancada e logo de cara vi Arthur rindo, a varinha apontada na direção onde estava antes. Foi como somar 2 + 2. Griff e Ty somaram também e tentaram me segurar, mas já levantei correndo na direção dele e desferindo um soco certeiro. Esqueci completamente que possuía uma varinha e podia usá-la para derrubá-lo. Uma roda rapidamente se formou na sala e enquanto uns gritavam para alguém nos separar, a maioria instigava a briga.

- EXPULSO! – um jato me atingiu e pela segunda vez fui lançado para longe – Detenção! Os dois! É um clube de duelos, não clube da luta trouxa! Levantem do chão e podem sair, a aula terminou para os dois! Ty, Reno, acompanhem os dois até a enfermaria para cuidarem dos machucados.

Ty me ajudou a levantar do chão e peguei a varinha caída, guardando no bolso. Encarei Arthur de lado e ele me encarou de volta, mas Reno já estava segurando seu braço pronto para torcê-lo se tentasse alguma coisa. Ty apenas me olhava sério, mas sabia que ia fazer o mesmo se eu voltasse a atacá-lo. Eles nos escoltaram até a ala hospitalar e a enfermeira mal humorada expulsou os dois, mas eles disseram que iam esperar do lado de fora. Sentamos cada um em uma cama em silencio e evitava olhar para ele, pois sabia que podia perder a calma outra vez.

- Você é um babaca, sabia? – Arthur falou de repente e o encarei
- Eu? – perguntei indignado – Foi você que me atacou do nada!
- E você ontem deu um tiro de tinta na minha cara!
- E isso lhe dá o direito de me atacar pelas costas? Grande covarde, é o que você é!
- Se eu sou um covarde, você é um grande imbecil que se faz se herói e digno de representar sua escola no torneio, mas é um egocêntrico, só olha para o próprio umbigo! Não está nem ai pras pessoas ao redor, o mundo gira em torno de você!
- O que você fumou hoje? – perguntei irritado, mas um estalo ocorreu e comecei a rir – Você está revoltadinho assim porque eu deixei você amarrado dentro do lago? Sério?
- Bom, mostrou que você não tem caráter, foi ótimo ter me deixado lá!
- Se quer saber, não senti nem uma ponta de arrependimento. E também, por que está tão irritado? Nem sou seu amigo, eu não gosto de você, por que deveria salva-lo sabendo que não estava em perigo?
- Eu teria tirado você do lago.
- Por quê? Você também me odeia, ia querer fingir quem não é e sair de herói?
- Eu faria porque era o certo a se fazer!
- Você não vai me fazer sentir remorso, desiste. Só teria arriscado estourar o tempo da prova com pessoas com quem me importo, e não é o seu caso.
- Não esperava mesmo que sentisse remorso, não é do sei feitio...
- Você está morrendo de inveja porque não foi selecionado como campeão de Hogwarts, perdeu para uma garota, por que não admite logo?
- Cala a boca! Você não sabe do que está falando! – e soltei uma risada, o que o irritou ainda mais.
- Eu dei autorização para conversarem? – a enfermeira voltou com dois frascos de poções na mão e algumas gazes e interrompeu a discussão – Sentem de frente pra mim e calados!

Virei de costas pra ele e ainda pude ouvi-lo resmungar alguma coisa, mas ignorei por completo. Quando a enfermeira terminou de limpar os machucados, agradeci e sai sem olhar para trás, indo com Ty direto para o clube de transfiguração, do qual Arthur não fazia parte, fato que agradeci. Não estávamos mais suportando a presença constante um do outro e sabia que agora o melhor era evitar esbarrar com ele pelos corredores o máximo que fosse possível, assim evitaríamos novos confrontos...
 

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